Dona Heróica!!!

Dona Heróica, de origem interiorana e criada nas farturas das fazendas, depois de crescida viera morar na zona urbana em uma casa antiga, sólida, enorme, com respeitável esplendor, bem central.

Para manter suas preferências conservadoras e seu gosto por grandes espaços, através do voto direto permitiu construir um galinheiro bastante espaçoso, com razoável suporte de conforto para as aves, totalmente cercado por muros.

Um barracão separado só para posturas e criatório de pintos (tipo estagiários), outro provido de poleiros para o repouso da noite. Bebedouros, comedouros, caixa d’água, portas e demais acessórios eram o complemento desse mundo galináceo. E ali foram alojados frangos de diversas correntes, galinhas, galos, que se renovavam em gerações, propiciando para a família de Dona Heróica os almoços domingueiros com frango e macarronada, cardápio tradicional na casa.

O que devemos ressaltar é que aquele galinheiro não era um estabelecimento qualquer. Era uma sociedade galinácea feita para ser organizada e estruturada. Um dos galos, com grandes esporas e fulgurante barbela, era o Prefeito do terreiro, exigia que sua autoridade fosse respeitada por todos. Essa comunidade galinácea se dizia distinta e diversificada. Havia as matronas, as jovens e sensuais polhas, os astutos frangos, os idosos.

As galinhas criadeiras, enquanto ciscavam, ensinavam as experiências da vida às suas ninhadas. As solteiras, nos momentos de descanso à sombra das árvores, urdiam comentários às ações da polhada, que se encontravam as escondidas com o Galo Prefeito. Os jovens machos exercitavam as audácias belicosas. Os idosos dialogavam sobre direitos e obrigações avícolas. Havia os que dialogavam os que apreendiam e os que nada aprendiam. Assim vivia a comunidade, num dia-a-dia sempre diferente, mas parecendo sempre igual. Às vezes sumia um habitante, mas poucos davam importância ao fato, tão grande era o povaréu Ccs no galinheiro.

A rotina se afirmava em todos os aspectos. O Prefeito percorria orgulhoso e imponente cada espaço da nação vermelha, ao tempo em que, com severas bicadas, resolvia na hora pendências contrarias ao seu reino ditador. Os cientistas tentavam esclarecer qual a soma de dois mais dois grãos de milho, visto que eles não são exatamente do mesmo tamanho e ocupam espaço diferente no papo. O filósofo procurava argumentar a um grupo de discípulos que só existia o vermelho e a estrela que habitavam, não havendo mais nada além. O padre fazia sua prédica a um conjunto muito grande de senhoras galinhas, frangas e a senhores idosos. Explicava que os polhastros que sumiam aos domingos eram mortos por um Deus, como castigo por serem pecadores e incréus com o sistema e com os companheiros; e que suas almas não tinham salvação. Para os viventes, a redenção somente seria alcançada se cressem nas palavras de seu Deus, e na futura energia eólica. Assim seguia a vida no galinheiro. Na propriedade da Dona Heróica, no período de carnaval, seus moradores haviam participado da festança momesca, ocasião em que confeccionaram uma grande estrutura de isopor na forma de um galo majestoso, colorido com tinta dourada, crista e barbela rubra brilhante, cauda multicor e artístico arranjo de estrelas vermelhas, como composição final.

Terminadas as festas, o imenso galo farrista foi colocado sob uma coberta existente numa parte do quintal, longe do galinheiro e ali esquecido.

Havia nessa comunidade um forte frango, quase obeso, já com esporas apontando e apresentando as primeiras penas de maioridade em torno do pescoço, quase um Vice. Desde frangote já fora briguento, audacioso, irrequieto e aventureiro. Estava sempre correndo, pulando e batendo asas, um verdadeiro temor.

Em certo dia, sem que para isso planejara, deu um impulso mais vigoroso e se viu ultrapassando o muro que limitava seu mundo ditatorial. Muito curioso e surpreso com aquele espaço nunca imaginado, andou pela parte externa toda, explorando o admirável ambiente. Chegando perto do galpão, parou espantado ao ver aquele imenso galo brilhante. Demoradamente reparou os pormenores, extasiado, arrebatado. Sentiu-se tomado por estranho torpor mental e, ante o fascinante fulgor das estrelas, deu-se a ouvir mensagens ditadas em tom paternal, o que mais o comoveu e convenceu da santidade de sua própria alma. Saiu em rápida corrida até a amurada, transpondo-a de volta ao seu lar.

Procurando o Padre Alencaron Galináceo, que servia como chefe do gabinete do Prefeito, imediatamente lhe contou o ocorrido, acrescentando que vira Deus; que essa divindade existia mesmo. E mais: que o divino senhor era na verdade um grande e esplendoroso ser, feito à imagem e semelhança do galo. Estava hospedado em maravilhoso paraíso e resplandecia auras de bondade e amor. Dissera-lhe palavras de conduta e salvação.

O padre, vendo ameaçada sua posição e autoridade destacada na sociedade avícola, repeliu as novas revelações, qualificando-as de heresia e esclarecendo que deus era mesmo um galo todo poderoso, mas que as descrições estavam em desacordo com as verdades eternas, vindas de gerações desde o nascimento do mundo. Convicto, ponderou o jovem com entusiasmo:

— Mas eu vi o senhor divino! E dele recebi diversas mensagens que deverão ser ensinadas aos pecadores para que, mediante a fé, orações e penitências, sejam aceitos no reino dos heróicos após a morte.

— Herege, pecador, alma maligna, demônio! Só falta ser seguidor de Jaguar – retrucou o sacerdote.

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Repetiu o auto-sugestionado frango sua história para vários grupos que se formavam à sua volta, fazendo prosélitos e, sem o perceber, foi-se tornando um pastor de almas descontentes e fundador de uma nova facção religiosa de estrelas.

Essa foi a primeira dissidência surgida na civilização galinácea da Dona Heróica.


* Crônica baseada na história "No Galinheiro" do Blog de Ivo S G Reis


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